ARIANA, a mulher

quarta-feira, 23 de julho de 2014




Quando, aquela noite, na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno
O tempo convergiu para a morte e houve uma cessação estranha seguida de um debruçar do instante para o outro instante
Ante o meu olhar absorto o relógio avançou e foi como se eu tivesse me identificado a ele e estivesse batendo soturnamente a Meia-Noite
E na ordem de horror que o silêncio fazia pulsar como um coração dentro do ar despojado
Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das paredes e se plantara aos meus olhos em toda a sua fixidez noturna
E que eu estava no meio dela e à minha volta havia árvores dormindo e flores desacordadas pela treva.

Como que a solidão traz a presença invisível de um cadáver — e para mimera como se a Natureza estivesse morta
Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua deglutição monstruosa mas para mim era como se ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua sombra imóvel para o céu alto e sem lua
E nenhum grito, nenhum sussurro de água nos rios correndo, nenhum eco nas quebradas ermas
Nenhum desespero nas lianas pendidas, nenhuma fome no muco aflorado das plantas carnívoras
Nenhuma voz, nenhum apelo da terra, nenhuma lamentação de folhas, nada.

Em vão eu atirava os braços para as orquídeas insensíveis junto aos lírios inermes como velhos falos
Inutilmente corria cego por entre os troncos cujas parasitas eram como a miséria da vaidade senil dos homens
Nada se movia como se o medo tivesse matado em mim a mocidade e gelado o sangue capaz de acordá-los
E já o suor corria do meu corpo e as lágrimas dos meus olhos ao contato dos cactos esbarrados na alucinação da fuga
E a loucura dos pés parecia galgar lentamente os membros em busca do pensamento
Quando caí no ventre quente de uma campina de vegetação úmida e sobre a qual afundei minha carne.

Foi então que compreendi que só em mim havia morte e que tudo estava profundamente vivo
Só então vi as folhas caindo, os rios correndo, os troncos pulsando, as flores se erguendo
E ouvi os gemidos dos galhos tremendo, dos gineceus se abrindo, das borboletas noivas se finando
E tão grande foi a minha dor que angustiosamente abracei a terra como se quisesse fecundá-la
Mas ela me lançou fora como se não houvesse força em mim e como se ela não me desejasse
E eu me vi só, nu e só, e era como se a traição tivesse me envelhecido eras.

Tristemente me brotou da alma o branco nome da Amada e eu murmurei — Ariana!
E sem pensar caminhei trôpego como a visão do Tempo e murmurava — Ariana!
E tudo em mim buscava Ariana e não havia Ariana em nenhuma parte
Mas se Ariana era a floresta, por que não havia de ser Ariana a terra?
Se Ariana era a morte, por que não havia de ser Ariana a vida?
Por que — se tudo era Ariana e só Ariana havia e nada fora de Ariana?

Baixei à terra de joelhos e a boca colada ao seu seio disse muito docemente — Sou eu, Ariana...
Mas eis que um grande pássaro azul desce e canta aos meus ouvidos — Eu sou Ariana!
E em todo o céu ficou vibrando como um hino o muito amado nome de Ariana.
Desesperado me ergui e bradei: Quem és que te devo procurar em toda a parte e estás em cada uma?
Espírito, carne, vida, sofrimento, serenidade, morte, por que não serias uma?
Por que me persegues e me foges e por que me cegas se me dás uma luz e restas longe?

Mas nada me respondeu e eu prossegui na minha peregrinação através da campina
E dizia: Sei que tudo é infinito! — e o pio das aves me trazia o grito dos sertões desaparecidos
E as pedras do caminho me traziam os abismos e a terra seca a sede nas fontes.
No entanto, era como se eu fosse a alimária de um anjo que me chicoteava — Ariana!
E eu caminhava cheio de castigo e em busca do martírio de Ariana
A branca Amada salva das águas e a quem fora prometido o trono do mundo.

Eis que galgando um monte surgiram luzes e após janelas iluminadas e após cabanas iluminadas
E após ruas iluminadas e após lugarejos iluminados como fogos no mato noturno
E grandes redes de pescar secavam às portas e se ouvia o bater das forjas.
E perguntei: Pescadores, onde está Ariana? — e eles me mostravam o peixe
Ferreiros, onde está Ariana? — e eles me mostravam o fogo
Mulheres, onde está Ariana? — e elas me mostravam o sexo.

Mas logo se ouviam gritos e danças, e gaitas tocavam e guizos batiam
Eu caminhava, e aos poucos o ruído ia se alongando à medida que eu penetrava na savana
No entanto era como se o canto que me chegava entoasse — Ariana!
E pensei: Talvez eu encontre Ariana na Cidade de Ouro — por que não seria Ariana a mulher perdida?
Por que não seria Ariana a moeda em que o obreiro gravou a efígie de César?
Por que não seria Ariana a mercadoria do Templo ou a púrpura bordada do altar do Templo?

E mergulhei nos subterrâneos e nas torres da Cidade de Ouro mas não encontrei Ariana
Às vezes indagava — e um poderoso fariseu me disse irado: — Cão de Deus, tu és Ariana!
E talvez porque eu fosse realmente o Cão de Deus, não compreendi a palavra do homem rico
Mas Ariana não era a mulher, nem a moeda, nem a mercadoria, nem a púrpura
E eu disse comigo: Em todo lugar menos que aqui estará Ariana
E compreendi que só onde cabia Deus cabia Ariana.

Então cantei: Ariana, chicote de Deus castigando Ariana! e disse muitas palavras inexistentes
E imitei a voz dos pássaros e espezinhei sobre a urtiga mas não espezinhei sobre a cicuta santa
Era como se um raio tivesse me ferido e corresse desatinado dentro de minhas entranhas
As mãos em concha, no alto dos morros ou nos vales eu gritava — Ariana!
E muitas vezes o eco ajuntava: Ariana... ana...
E os trovões desdobravam no céu a palavra — Ariana.

E como a uma ordem estranha, as serpentes saíam das tocas e comiam os ratos
Os porcos endemoninhados se devoravam, os cisnes tombavam cantando nos lagos
E os corvos e abutres caíam feridos por legiões de águias precipitadas
E misteriosamente o joio se separava do trigo nos campos desertos
E os milharais descendo os braços trituravam as formigas no solo
E envenenadas pela terra descomposta as figueiras se tornavam profundamente secas.

Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e mulheres desposadas
Umas me diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram cegas e paralíticas
E os homens me apontavam as plantações estorricadas e as vacas magras. E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as crianças morriam
E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos
E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e que sufocava as vacas magras.

Mas como quisessem me correr eu falava olhando a dor e a maceração dos corpos
Não temas, povo escravo! A mim me morreu a alma mais do que o filho e me assaltou a indiferença mais do que a lepra
A mim se fez pó e carne mais do que o trigo e se sufocou a poesia mais do que a vaca magra
Mas é preciso! Para que surja a Exaltada, a branca e sereníssima Ariana
A que é a lepra e a saúde, o pó e o trigo, a poesia e a vaca magra
Ariana, a mulher — a mãe, a filha, a esposa, a noiva, a bem-amada!

E à medida que o nome de Ariana ressoava como um grito de clarim nas faces paradas
As crianças se erguiam, os cegos olhavam, os paralíticos andavam medrosamente
E nos campos dourados ondulando ao vento, as vacas mugiam para o céu claro
E um só clamor saía de todos os peitos e vibrava em todos lábios — Ariana!
E uma só música se estendia sobre as terras e sobre os rios — Ariana!
E um só entendimento iluminava o pensamento dos poetas — Ariana!

Assim, coberto de bênçãos, cheguei a uma floresta e me sentei às suas bordas — os regatos cantavam límpidos
Tive o desejo súbito da sombra, da humildade dos galhos e do repouso das folhas secas
E me aprofundei na espessura funda cheia de ruídos e onde o mistério passava sonhando
E foi como se eu tivesse procurado e sido atendido — vi orquídeas que eram camas doces para a fadiga
Vi rosas selvagens cheias de orvalho, de perfume eterno e boas para matar a sede
E vi palmas gigantescas que eram leques para afastar o calor da carne.

Descansei — por um momento senti vertiginosamente o húmus fecundo da terra
A pureza e a ternura da vida nos lírios altivos como falos
A liberdade das lianas prisioneiras, a serenidade das quedas se despenhando.
E mais do que nunca o nome da Amada me veio e eu murmurei o apelo — Eu te amo, Ariana!
E o sono da Amada me desceu aos olhos e eles cerraram a visão de Ariana
E meu coração pôs-se a bater pausadamente doze vezes o sinal cabalístico de Ariana...
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Depois um gigantesco relógio se precisou na fixidez do sonho, tomou forma e se situou na minha frente, parado sobre a Meia-Noite
Vi que estava só e que era eu mesmo e reconheci velhos objetos amigos.
Mas passando sobre o rosto a mão gelada senti que chorava as puríssimas lágrimas de Ariana
E que o meu espírito e o meu coração eram para sempre da branca e sereníssima Ariana
No silêncio profundo daquela casa cheia da Montanha em torno.

                                                                                                                    - Vinicius de Moraes