O mito da parelha alada:

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014


           O caracterizá-la daria ensejo para divinos e longos discursos. Representá-la numa imagem já é coisa que se possa fazer num discurso humano de menores pretensões. A alma pode ser comparada com uma força natural e ativa, constituída de um carro puxado por uma parelha alada e conduzido por um cocheiro.

           Os cavalos e os cocheiros das almas divinas são bons e de boa raça, mas os dos outros seres são mestiços. O cocheiro que nos governa rege uma parelha na qual um dos cavalos é belo e bom, de boa raça, enquanto o outro é de raça ruim e de natureza arrevesada. Assim, conduzir nosso carro é ofício difícil e penoso.
            Cabe ainda explicar a razão pela qual, entre os seres animados, uns são mortais e outros imortais.
             A alma universal rege a matéria inanimada e manifesta-se no universo de múltiplas formas. Quando é perfeita e alada, paira nas esferas e governa a ordem do cosmos. Mas quando perde as suas asas, decai através dos espaços infinitos até se consorciar a um sólido qualquer, e aí estabelece o seu pouso. Quando reveste a forma de um corpo terrestre, este começa, graças à força que lhe comunica a alma, a mover-se. É a este conjunto de alma e de corpo que chamamos de ser vivo e mortal.
            Quanto à denominação de imortal, isto é algo que não podemos exprimir de uma maneira racional. Nós conjeturamos, sem disso termos experiência alguma nem a suficiente clareza, que um ser imortal seria a combinação de uma alma e de um corpo que se unem para toda a eternidade. Mas isso depende de Deus.
          Expliquemos agora de que modo as almas perdem as asas.
          A tarefa da asa consiste em conduzir o que é pesado para as alturas, onde habita a raça dos deuses. A alma participa do divino mais do que qualquer outra coisa corpórea. O que é divino é belo, sábio e bom. Dessas qualidades as asas se alimentam e se desenvolvem, enquanto todas as qualidades contrárias, como o que é feio e o que é mau, fazem-na diminuir e fenecer. Zeus, o grande condutor do céu, anda no seu carro alado a dar ordens e a cuidar de tudo. O exército dos deuses e dos demônios segue-o, distribuído em onze tribos. Héstia é a única entre os seres divinos que permanece em casa. Cada um dos outros onze deuses é o guia da sua tribo ordenada. Há muitos e agradáveis espetáculos e caminhos no céu, por onde anda a grande família dos deuses, fazendo cada um deles o que lhe está afeito e seguindo-os aqueles que os podem seguir.
          Quando se dirigem para o banquete que os espera, os carros sobem por um caminho escarpado até o ponto mais elevado da abóbada celeste. Os carros dos deuses que se mantêm em equilíbrio, graças à docilidade dos corcéis, sobem sem dificuldade. Os outros grimpam com dificuldade porque o cavalo de má raça inclina e puxa o carro para a terra. Isso dá então grande trabalho para a alma.
         As almas daqueles que chamamos imortais, logo que atingem a abóbada celeste aí se mantêm; movem-se em grandes círculos e podem então contemplar tudo o que fora dessa abóbada abarca o Universo.

Fedro - Platão.